A “DIVINA COMÉDIA”, opus magnum de Dante Allighieri , é o poema da pluralidade: pluralidade de vozes, de estilos, de níveis de língua, de planos cósmicos.
Como sugestão de leitura, propomos o seguinte texto de Marco Lucchesi, intitulado Dante 700 e publicado no “Jornal de Letras” de 20/10/2021
«Desde a
infância, Dante é meu fantasma. Quase de carne e osso. Vibrátil. Tornou-se meu
enigma e obsessão. Determinou parte de minhas escolhas e de minhas recusas.
Todos os anos volto ao Inferno, Purgatório e Paraíso. Basta entrar uma vez,
para nunca mais sair. Um labirinto de beleza.
A morte
de Dante é celebrada, mundo afora, com pompa e circunstância, em quase todas as
línguas da Terra, para as quais foi traduzida a Divina comédia.
Setecentos anos de presença e juventude. Seu decassílabo é fonte cristalina,
pura dinâmica e inspiração. Como se Dante estivesse mais vivo do que nunca. Não
tanto pelo impulso motor que imprime direção aos cem cantos da Comédia,
mas pelo fulgor da poesia, no repertório das imagens, na nitidez de seu olhar.
Os
timbres novos e os acentos vários descerram uma viagem audaz no mundo das
almas. Terreno até então desconhecido, seu canto renova as potências da
linguagem. Severa, sublime, fulgurante. Leitura que produz uma força de tração
irresistível, a Terra e o Cosmos. Densidade brutal ou leve transparência,
segundo a cartografia dos três reinos. Obra que traduz um tempo misto, ao longo
da qual o antigo e o moderno se entrelaçam, liberdade e erudição, matéria e
sonho.
Quantos
interrogam o mistério de Beatriz e buscam trazê-la ao mundo em que vivemos, num
gesto de adesão e profecia. A obra de Dante, em certo e largo sentido,
escapa ao controle do autor e da crítica. Tornou-se uma grande metáfora, uma
espécie de universo inflacionário. Vive além do espaço-tempo, na longa viagem
pelos séculos, entre algas e correntes de leitores, cardumes incontáveis, quase
infinitos.
Assim,
num país como o Brasil, os olhos de Beatriz confundem-se com os olhos de
Diadorim. Nossa Divina comédia passa através do sertão, de
Euclides, Rosa e Suassuna. Não abandona a literatura de cordel, os romances
antigos, o alfabeto de vaqueiros e a linguagem armorial, que rege a presente
exposição.
A leitura
passa pelo Barroco, em que se prolonga, transfigurado, o tempo de Dante, nas
igrejas coloniais, altares e torres antigas, onde dobram os sinos de Ouro
Preto, Salvador e Paraty.Chega à Semana de Arte Moderna, com A divina
increnca, e às escolas de samba.
Nossa
abordagem dantesca possui leitores de águas claras: Camões, Vieira e Pessoa. E
desta suma trindade, outra se acrescenta, não menos admirável: Murilo Mendes,
Cabral e Drummond. E me permitam acrescentar: Jorge de Lima e Joaquim Cardozo.
A
política entra na corrente sanguínea da Divina comédia. Escrita no
exílio, o poeta criticou duramente o que lhe parecia indigno, sem
meias-palavras, papas e imperadores, leigos e padres. Defendeu a separação
entre poder temporal e poder espiritual.
A
república e a poesia, tão caras ao poeta, não fogem ao olhar de Beatriz. Na
distopia, impõe-se pensar o bom lugar. Assim, a transição do Inferno ao
Paraíso reflete a crise de seu tempo. Sinal de quem se rebela e sonha com uma
nova ordem.
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